O Brasil de antigamente morreu, e não fizemos o luto, reflete o psicanalista Christian Dunker.
Para o autor de Lutos finitos e infinitos (Editora Paidós), lançado em 2023, o lugar do País no mundo se reformulou — mas o problema é que não estamos discutindo isso.
Em entrevista realizada pela Revista Problemas Brasileiros e o Canal UM BRASIL — ambas realizações da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP) —, Dunker comenta a generalização dos transtornos mentais, reflete sobre a “sociedade ansiosa” e analisa a febre das apostas.
País ‘pulou’ a fase do luto
- O antigo Brasil morreu. Dunker ressalta que as reformulações e transformações do último período deram lugar a uma nação de cara nova. “Você tem um país que acabou: um Brasil culturalmente marcado por um programa modernista, pelas ideias de desenvolvimento, pela democracia racial”, defende.
- Sem olhar para trás. O Brasil de antigamente se foi, mas sem um balanço desse encerramento, momento que teria sido oportuno para reconstruir “o que a gente queria lá atrás”. “A crise é tamanha que você precisa seguir adiante mesmo assim, sem saber para onde vai”, reflete o psicanalista.
- O luto nos transforma. Em sua recente publicação sobre o luto, Dunker avalia esse processo de perdas como algo que nos define e transforma — e que pode, sim, ser vivido de forma coletiva e não ter um fim. Segundo o psicanalista, o necessário balanço acerca das últimas transformações vividas pelo País deveria envolver esse luto.
Sociedade ansiosa
- Sintomas brasileiros. Cerca de 68% da população do País já relatou algum sentimento de nervosismo, ansiedade e tensão, segundo pesquisa do Instituto Cactus e da AtlasIntel. O agravamento desse quadro pode estar relacionado à dinâmica das redes sociais, à precarização do trabalho, à insegurança econômica e às desigualdades sociais.
- Mais que ansiedade. Dunker acredita que vivemos em uma sociedade ansiosa. “Temos uma série de problemas que vão confluindo para isso”, explica. Mas adverte que “o cardápio é vasto”. Também estamos convivendo com níveis altos de transtornos do espectro autista e déficit de atenção, por exemplo. “É uma sociedade em que 3 em cada 10 pessoas têm problemas de sono. É muita coisa”, completa.
- Banalização do diagnóstico. Dunker também chama a atenção para um boom das generalizações dos transtornos mentais e dos diagnósticos arbitrários. O famoso estresse deu lugar às modalidades ansiógenas, como a ansiedade e o pânico. “Hoje, dizer ‘Eu tenho ansiedade’ é o mesmo que dizer ‘Eu tenho febre’. Pode ser tuberculose, sífilis, pode ser um monte de coisas, mas já serve para dizer que tem algo errado”, destaca.
A febre das apostas
- Cultura da dívida. O endividamento está enraizado na cultura brasileira. Entre idas e vindas, essa forma de viver voltou a ser realidade para muitos, reflete o psicanalista. “Você tem o Brasil reendividado em decorrência de apostas que poderiam ter sido legisladas”, afirma Dunker.
- Estratégia financeira. A febre das bets, as famosas plataformas de apostas online, já virou estratégia financeira. Mas, cedo ou tarde, essa prática leva ao endividamento. Um estudo da FecomercioSP mostrou que os apostadores perdem mais (44%) do que ganham (30%).
- Perfil do apostador. A maior parte do público das bets pertence às classes mais baixas. Mesmo assim, o valor apostado é relativamente alto. Mais da metade dos entrevistados (52%) gasta mais de R$ 50 por mês. E quase 20% arriscam mais de R$ 100 mensalmente. Enquanto isso, os montantes totais dessas plataformas chegam a R$ 68,2 bilhões — o equivalente a 0,6% do Produto Interno Bruto (PIB).
- Problema institucional. O debate sobre a regulação das apostas anda a passos lentos. Atualmente, o Supremo Tribunal Federal (STF), a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), analisa a “Lei das Bets”, que pretende regulamentar o mercado de apostas online no País. Para Dunker, há atraso na definição de um marco regulatório. E a lentidão do Brasil em responder a esse problema reflete a “lentificação apática das instituições”.