Por Eugênio Bucci
Em setembro de 2016, uma reportagem de capa da revista semanal inglesa The Economist anunciava a era da “pós-verdade”. As coisas da política não primavam pela verdade naquele ano. A campanha eleitoral que levou Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, como ficaria muito claro nos anos seguintes, vinha sendo abastecida em grande parte por notícias fraudulentas. Entre os absurdos produzidos pela máquina eleitoreira, foi “noticiado” que Barack Obama não era americano e que o bilionário tinha o apoio do Papa Francisco na eleição. A campanha virou caso de polícia. Mais recentemente, várias investigações para avaliar uma possível ação de hackers russos na difusão de fake news que interferiram no resultado eleitoral deixaram a situação de Trump cada vez mais difícil. Google e Facebook admitiram a presença de dinheiro da Rússia na distribuição de mensagens, posts e relatos inverídicos em sua campanha.
Diante disso, o Estado brasileiro não deve ignorar os riscos representados pelas notícias falsas. Não foi surpresa quando, em 2018, para combatê-las, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) instaurou o Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições. A iniciativa não é ruim, mas comporta novos riscos, alguns deles ainda mais sérios que os trazidos pelas fake news.
O mais grave desses novos riscos é que as autoridades venham a cair na tentação de adotar medidas restritivas de liberdade. Se uma sociedade depende do Estado para traçar a linha divisória entre o que é mentira e o que é verdade, essa sociedade se afasta da rotina democrática e do Estado de Direito e ingressa perigosamente nos pesadelos distópicos de obras como 1984, de George Orwell, em que o Ministério da Verdade, ou Ministério das Ideias, decreta o desaparecimento das notícias e dos relatos considerados falsos pelo Estado.
Ao lado do risco de desvios autoritários, abre-se a possibilidade de deterioração da cultura política. Se o Estado embarca em um discurso de controle excessivo e de fiscalização dos debates da sociedade civil, pode haver um recrudescimento das mentalidades propensas à intolerância e simpáticas a soluções de força.
O Exército participa do esforço liderado pelo TSE. A participação é compreensível, pois a segurança nacional deve ser um dos tópicos das preocupações do Estado nessa matéria. Por outro lado, as Forças Armadas não se especializaram em defender e respeitar o direito à informação de que todo cidadão é titular. Basta lembrar que, durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade – instalada pela então presidente da República Dilma Rousseff –, as Forças Armadas se recusaram a fornecer dados sobre o que se passou com os torturados, assassinados ou “desaparecidos” pela ditadura militar brasileira. Não respeitaram o direito à informação da sociedade.
Agora, quando estamos numa democracia, todo esforço de combate às fake news deve começar pelos fortalecimentos da liberdade de expressão e do direito à informação. Fora disso, a democracia perderá terreno. Torçamos para que as medidas do Estado nesse assunto deem prioridade às liberdades e não encampe soluções autoritárias.
*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP
Artigo publicado na revista Problemas Brasileiros, edição especial de setembro de 2018.