Fechar

Educação e Cultura

nov 08, 2018

Livro: um passaporte para a liberdade, por Marco Lucchesi

Por Marco Lucchesi

Há 18 anos, recebi a primeira carta de um detento. Vinha de um presídio de São Paulo e pedia livros para a biblioteca que ele estava formando na instituição. Não tanto quanto o remetente, chamou-me a atenção a epígrafe com a qual ele começou a carta: “A literatura é irmã gêmea da liberdade”

Encanta-me a metáfora. Ela dá ao livro o status de um passaporte para o futuro. Esse é o motor de inúmeros projetos de remissão de pena pela leitura que se multiplicam em presídios brasileiros nos últimos anos. Quanto mais é capaz de ler, mais o leitor reflete e produz a experiência de leitor e, portanto, menos dias ficará preso. Por isso, mesmo antes de a remissão da pena pela leitura ser amparada pela lei, senti-me atraído a trabalhar com o desafio da leitura no cárcere.

Essa possibilidade foi aberta pela legislação em 2011, quando a Lei n.º 12.433 alterou a Lei de Execução Penal (n.º 7.210/1984), possibilitando a remissão da pena pelo estudo a presos nos regimes fechado e semiaberto. Em 2013, a Recomendação n.º 44, do Conselho Nacional de Justiça estendeu essa possibilidade, ao criar critérios para a concessão de remissão pela leitura, uma vez que essa prática pode agregar conhecimentos e valores éticos à formação do leitor, o que a equipara ao estudo em uma escola formal.

Faço visitas constantes a presídios e estabeleço um diálogo franco com os apenados, como se estivesse conversando com meus alunos. Não me canso de admirar a relação que os apenados têm com a leitura. Algo muito sentido, quase ingênuo, como quem se entrega a uma grande aventura que, muitas vezes, falta além do cárcere, entre os leitores daqui de fora. Essa relação, para os que mal tiveram acesso ao letramento, é de ampla adesão. É uma resposta ao imobilismo, à realidade tão drástica da prisão. Muitas vezes, eles ingressam no mundo da leitura pela Bíblia. Outros, têm uma ligação com o livro quase oracular, como algo que diz coisas importantes para eles

Com 686,5 mil pessoas em presídios superlotados (a capacidade total é para 407 mil), temos a terceira maior população carcerária do mundo. Negros, em sua maioria, pobres e jovens. Antes de chegarem ali, muitos não tiveram acesso – não digo aos livros, não digo à escola – a condições mínimas de humanidade. Uma ferida dolorosa provocada pela ausência do Estado, um vazio republicano. Estado que faz o papel de “madrasta”.

E, apesar disso, quando escolarizados na prisão, eles têm a chance de vivenciar uma experiência riquíssima de vida, complexa. Por isso, defendo as escolas prisionais. Precisamos urgentemente ampliar o número de matrículas nas escolas no cárcere. Atrair para essas classes, sobretudo os presos mais jovens, muitas vezes retidos nas unidades socioeducativas, de breve duração. Se a proposta pedagógica for bem orientada, os mais jovens encontram uma figura de apego, novos horizontes diferentes dos que dispunham fora da instituição, em suas comunidades de origem.

Podem me perguntar: ele vai sair do crime por ler mais? Mas a pergunta não faz sentido. A leitura é elemento integral da cidadania e da humanidade. Eis porque levo livros às prisões. Meu sonho é ocupá-las de tal modo que não sobre lugar para os presos. Que o cárcere brasileiro se transforme numa grande biblioteca, e os apenados, livreiros, para atender ao cidadão. Sei que é uma utopia, um sonho de olhos abertos, mas vejo a leitura e a escola como um direito inalienável da cidadania. Enquanto o Brasil não colocar a educação na sua medula, vai perder uma parcela imensa de futuro, condenado a não enfrentar o que mais precisa: a construção de uma cultura da paz, igualdade e promoção social. Dentro do cárcere. Mas não apenas.

*Marco Lucchesi é escritor, professor da UFRJ e presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL)
Artigo publicado na revista Problemas Brasileiros, edição especial de setembro de 2018.

OBRIGADO POR SE CADASTRAR NA NOSSA NEWSLETTER! AGORA VOCÊ IRÁ RECEBER INFORMAÇÕES SOBRE QUESTÕES POLÍTICAS, ECONÔNICAS E SOCIAL DO BRASIL. CADASTRE-SE E RECEBA NOSSA NEWSLETTER!