Por Marco Lucchesi
Há 18 anos, recebi a primeira carta de um detento. Vinha de um presídio de São Paulo e pedia livros para a biblioteca que ele estava formando na instituição. Não tanto quanto o remetente, chamou-me a atenção a epígrafe com a qual ele começou a carta: “A literatura é irmã gêmea da liberdade”
Encanta-me a metáfora. Ela dá ao livro o status de um passaporte para o futuro. Esse é o motor de inúmeros projetos de remissão de pena pela leitura que se multiplicam em presídios brasileiros nos últimos anos. Quanto mais é capaz de ler, mais o leitor reflete e produz a experiência de leitor e, portanto, menos dias ficará preso. Por isso, mesmo antes de a remissão da pena pela leitura ser amparada pela lei, senti-me atraído a trabalhar com o desafio da leitura no cárcere.
Essa possibilidade foi aberta pela legislação em 2011, quando a Lei n.º 12.433 alterou a Lei de Execução Penal (n.º 7.210/1984), possibilitando a remissão da pena pelo estudo a presos nos regimes fechado e semiaberto. Em 2013, a Recomendação n.º 44, do Conselho Nacional de Justiça estendeu essa possibilidade, ao criar critérios para a concessão de remissão pela leitura, uma vez que essa prática pode agregar conhecimentos e valores éticos à formação do leitor, o que a equipara ao estudo em uma escola formal.
Faço visitas constantes a presídios e estabeleço um diálogo franco com os apenados, como se estivesse conversando com meus alunos. Não me canso de admirar a relação que os apenados têm com a leitura. Algo muito sentido, quase ingênuo, como quem se entrega a uma grande aventura que, muitas vezes, falta além do cárcere, entre os leitores daqui de fora. Essa relação, para os que mal tiveram acesso ao letramento, é de ampla adesão. É uma resposta ao imobilismo, à realidade tão drástica da prisão. Muitas vezes, eles ingressam no mundo da leitura pela Bíblia. Outros, têm uma ligação com o livro quase oracular, como algo que diz coisas importantes para eles
Com 686,5 mil pessoas em presídios superlotados (a capacidade total é para 407 mil), temos a terceira maior população carcerária do mundo. Negros, em sua maioria, pobres e jovens. Antes de chegarem ali, muitos não tiveram acesso – não digo aos livros, não digo à escola – a condições mínimas de humanidade. Uma ferida dolorosa provocada pela ausência do Estado, um vazio republicano. Estado que faz o papel de “madrasta”.
E, apesar disso, quando escolarizados na prisão, eles têm a chance de vivenciar uma experiência riquíssima de vida, complexa. Por isso, defendo as escolas prisionais. Precisamos urgentemente ampliar o número de matrículas nas escolas no cárcere. Atrair para essas classes, sobretudo os presos mais jovens, muitas vezes retidos nas unidades socioeducativas, de breve duração. Se a proposta pedagógica for bem orientada, os mais jovens encontram uma figura de apego, novos horizontes diferentes dos que dispunham fora da instituição, em suas comunidades de origem.
Podem me perguntar: ele vai sair do crime por ler mais? Mas a pergunta não faz sentido. A leitura é elemento integral da cidadania e da humanidade. Eis porque levo livros às prisões. Meu sonho é ocupá-las de tal modo que não sobre lugar para os presos. Que o cárcere brasileiro se transforme numa grande biblioteca, e os apenados, livreiros, para atender ao cidadão. Sei que é uma utopia, um sonho de olhos abertos, mas vejo a leitura e a escola como um direito inalienável da cidadania. Enquanto o Brasil não colocar a educação na sua medula, vai perder uma parcela imensa de futuro, condenado a não enfrentar o que mais precisa: a construção de uma cultura da paz, igualdade e promoção social. Dentro do cárcere. Mas não apenas.
*Marco Lucchesi é escritor, professor da UFRJ e presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL)
Artigo publicado na revista Problemas Brasileiros, edição especial de setembro de 2018.